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O caminho se faz é caminhando – Parte três – A primeira cirurgia

Eu penso muito em letras de música. Essa é sempre uma saída possível pra mim: (tentar) encaixar letras de música nos contextos onde estou inserido ou que estou vivendo. E pode ser absolutamente qualquer coisa, desde “Caçamba” do Grupo Molejo até “On the Sunny Side of the Street” popularizada por Louis Armstrong. Obviamente, as letras tem a ver com artista/estilo que estou mais ouvindo no momento. Nos terríveis anos do ensino médio, quando descobri Dream Theater, ouvia praticamente todo dia no meu discman(!). Mais tarde, muito ska e Dave Matthews Band.

É como a minha cabeça funciona, é meu jeito. 🙂

Muita água passou embaixo da ponte desde o diagnóstico até a data da cirurgia. A poeira se assenta e as coisas ficaram bem naturais depois que decidimos pelo Dr. Marcelo Vilela, entendemos todo o procedimento e encaixamos todas as preparações e decisões com a ideia de seguir a vida. As certezas: seria uma cirurgia longa, de aproximadamente 12 horas, eu estaria acordado em parte do processo, para que a equipe médica conseguisse fazer a relação entre a parte motora e linguagem sem me comprometer. “A ideia é você sair como você entrou“, nos disse o doutor em algum momento. Além disso, seria uma cirurgia com um corte bem grande, não precisaria me preocupar com o corte de cabelo e o pós-operatório seria chatinho. (Spoiler: não estava errado, mas tenho certeza que existem coisas bem piores).

Foi muito importante entender as decisões, escolhas e consequências, saber dos riscos e das possíveis sequelas temporárias. Foi fundamentalmente importante saber que eu tenho uma vida muito mais bonita e plena do que imaginava ter. E esse pensamento foi a chave para a terceira ressonância magnética que fiz, alguns dias antes da cirurgia. Comentei com a Tutu e a Carol que fiquei super calmo e emocionado, pensando em “Tenho muita história pra contar, muita coisa legal pra fazer: fotografar a lua, tocar com os amigos, curtir vocês, fazer uma família.

Que minha história é bonita, eu sou uma boa pessoa e sem nenhuma raiva ou ressentimento por estar passando pelo que estou passando. É a chance apresentada para me ver de uma nova forma“.

Na pior das hipóteses, o Dr. Marcelo comentou que eu poderia sair com um comprometimento temporário de linguagem ou na parte motora, mas que tudo iria passar em alguns dias. É fácil pintar umas coisas muito loucas na cabeça: vou sair bobo, vou mancar pelo resto da vida, esse trem não vai dar certo. Quando a ansiedade batia de uma forma mais latente, eu lembrava das aulas de meditação e colocava os pensamentos em ordem. O que tiver de ser, será.

Nesse período todo, duas letras vinham para a cabeça toda hora e sempre me emocionavam: “Can’t Win True Love” do Blues Traveler e “1999” do Prince.

Não eram letras novas, já cansei de ouvir os dois artistas, mas as letras – ou trecho delas – ganharam novos significados com o diagnóstico da doença. Talvez porque eu tenha começado a prestar atenção aos detalhes. O refrão da música do Blues Traveler é tipo assim:

There is no race to run (Não há corrida pra correr)
No evil curse needs to be undone (Nenhuma maldição precisa ser desfeita)
No hope of making what cannot be made (Nenhuma esperança em fazer o que não pode ser feito)
Some things are true and they will never fade away (Algumas coisas são verdadeira e jamais vão desaparecer)
Or up or down or out or in (ou subir, descer ou sair ou entrar)
No, you just can’t win (não, você não pode vencer)”

Eu estava correndo corridas na minha cabeça, e não estava precisando provar nada pra ninguém, fora os monstros que moram no meu latifúndio. Se vocês lembram, ser mais gentil comigo mesmo era a conclusão da parte 2.

Já o disco “1999” merece algumas linhas extras. Foi o primeiro álbum do Prince que ouvi com atenção e que me chamou atenção do quão genial ele era. “Purple Rain“, sua obra prima, é o álbum seguinte, mas “1999” é um excelente disco. A trinca com a faixa-título, “Little Red Corvette” e “Delirious” é muito sensacional. E ainda tem o bônus, “Lady Cab Driver“.

Bem no final da música, Prince começa a falar quase de maneira livre e tem um trechinho que eu acho bem poderoso:

We could all die any day 1999 (Podemos morrer a qualquer dia – 1999)
I don’t wanna die (Eu não quero morrer)
I’d rather dance my life away 1999 (Eu prefiro dançar na vida – 1999)
Listen to what I’m tryin’ to say…(Escute o que estou tentando a dizer)”

Sabotagem e baixa auto-estima são coisas que costumam andar de mãos dadas. Muitas vezes não damos valor para o que damos como garantido. O diagnóstico foi a primeira vez que acendeu um botão de alerta, uma forma de alerta sobre a finitude da vida. E aí comecei a valorizá-la mais. Bem mais. Nunca tive esse pensamento de acabar com a minha própria existência, e depois que estava tão dentro do processo, tão seguro do que iria fazer, o único pensamento possível era me respeitar e me esforçar, para conseguir sair melhor do que entrei.

No final de semana pré-cirúrgico, 01 e 02 de maio, subimos todos para a comuna na divisa entre Itabirito e Nova Lima. De novo, a comuna foi a minha morada no começo da pandemia, em março do ano passado e é um lugar de paz. A ideia era passar um final de semana relaxado, tentar tocar um pouco de música e colocar o foco em outras coisas.

No sábado, o Diego apareceu por lá e trouxe a guitarra, Aloízio levou o baixo e tocamos algumas coisas. Eu estava super nervoso, novamente tentando me provar para dois músicos absurdamente sensacionais. Talvez seja tema de um outro post, mas preciso realmente perder a timidez e o medo de tocar com gente tão legal e boa de serviço. Era uma zona segura, eram pessoas que só me querem bem. Não há motivo para tensão. Enfim.

O print da chamada com os amigos organizada pelo Marcos! 🙂

No domingo, fui surpreendido com uma chamada no zoom organizada pelo Marcos e com amigos nos mais diversos fusos horários do planeta: Caeté, São Paulo, Toronto, Vancouver, Estocolmo, Belo Horizonte. Me pegou de surpresa e eu perdi as palavras e o sentido das coisas. Eu realmente achava que seria uma conferência rápida, só um “vai dar tudo certo” e seguimos com nossas vidas no domingo. Eu fiquei ansioso, sem palavras, com aquele pensamento de “sério, gente, vocês tem mais coisa pra fazer no domingo“. Uma idiotice tremenda, a minha.

Comentei depois que “a ansiedade da ligação vem desse processo babaca de crueldade e achar que não precisam gastar tanto tempo com isso tudo“. Obviamente, estava muito feliz que o encontro aconteceu e que estou cercado desse amor todo.

Nesse momento, eu tinha alguns medos relativos à cirurgia. O maior deles, era o mais básico: saber se eu ia sobreviver ao procedimento. Não conheço um bloco cirúrgico na vida. Meu maior esforço cardíaco era fazer longos exercícios no crossfit. As chances eram baixas, mas não poderiam ser descartadas. Em seguida: como vai ficar meu corte de cabelo e se colocariam algum tipo de sonda para fazer xixi ao longo da cirurgia. Encerrada a conversa, a Andreza, cunhada da Carol, mandou um áudio explicando que a “sonda não é nada demais, nem doí pra tirar“. (Doi um pouco e incomoda uns dias)

Era isso. Tirando esses receios de novato, eu não tinha nenhum medo de operar, eu estava curioso com o processo todo. Estava confiante na escolha do médico, do hospital e do procedimento. Precisava acreditar no que aconteceria na segunda e torcer para o Dr. Marcelo e sua equipe fazerem o melhor trabalho possível.

Também precisava seguir as recomendações médicas. Como iria para o bloco na segunda cedo, a orientação era parar de comer à meia-noite de domingo e só beber água e água de coco até às 6h da segunda-feira. Lembrei de um meme que o Bizafra mandou pra mim anos atrás. Escrevi no grupo que temos, eu, ele e a Carol:

Biza, o cirurgião disse que é pra beber muita água e água de coco de meia noite até às 6h da manhã da segunda-feira. Pensei que quero ouvir uma coisa e uma coisa apenas“.

Hidratado.

Se a ordem era chegar bem hidratado no dia da cirurgia, iria cumpri-la. E pronto, estávamos no fatídico dia 3 de maio. Acordamos cedo, chegamos no hospital umas 7h30, fizemos todos os procedimentos e aguardamos. A cirurgia estava marcada para às 9h, mas as coisas atrasaram um pouquinho.

A foto do momento pré-cirúrgico. Registro da Carol Brant.

Me despedi dos meus pais e da Tutu, e eu e Carol fomos para a sala de pré-cirúrgico. Enquanto esperávamos, o anestesista, Dr. Braulio, apareceu para explicar como seria o procedimento e como as coisas iriam funcionar.

Na hora que ele citou algo do tipo “aí, vamos introduzir uma sonda para facilitar a urina ao longo da cirurgia“, nós dois rimos. De novo, pude realizar que quando não temos controle das coisas, o que nos resta é confiar no processo. Às 10h31 mandei mensagem pro grupo de whatsapp da família dizendo: “agora vai“. Me despedi da Carol, caminhei para o centro cirúrgico e a partir daqui, os relatos são bem diferentes. Obviamente, vou contar o meu lado. Carol, Tutu, Aloízio e meus pais podem contar uma versão diferente, mais coerente com quem precisou esperar. Para eles, foi um dia demorado. Pra mim, foi o contrário.

A primeira cirurgia

Vou caminhando até o bloco, batendo o maior papo com a equipe médica (lembram do meu mecanismo de defesa?), entro na sala e demoro um tempinho para sacar que a cirurgia seria ali.

E um fato curioso: não lembro de muitos detalhes da sala, fora a iluminação abundante.

Deito na cama/maca, vejo o Dr. Bráulio se aproximar e falar que iria começar a administrar o propofol. Resolvi bater papo, afinal de contas, o que mais poderia fazer ali?

– Dr. Bráulio, Propofol não foi o que matou o Michael Jackson?
– Foi, mas o problema não era o Propofol, era a falta de um médico para administrar o medicamento.

Nesse meio tempo, ele havia achado o acesso no meu braço direito, e começamos a bater um papo sobre o propofol, seu uso indiscriminado etc e tal. E uma vez que estávamos falando de artistas e o uso sem controle de medicamentos, não deu nem tempo para falar sobre a morte do Prince por conta da overdose de Fentanil.

Eu apaguei. Deve ter sido uma cena engraçada. O paciente entra falando feito locutor de festa no interior e apaga em menos de cinco minutos.

Eram umas 17h30 quando comecei a acordar, bem lentamente, com um tablet na minha frente e a neurofisiologista, Dra. Taís, pedindo para falar uma frase que estava na tela do dispositivo. Não tenho a menor ideia do que estava escrito, mas aparentemente consegui falar a frase.

Nos minutos seguintes, e também não sei quantos foram, eu basicamente contava de um até dez, dez até um e respondia também a comandos básicos pedidos pelo dr. Marcelo, apertar a mão da dra. Taís com a minha mão esquerda e conversava. No tablet, figuras que eu precisava responder o que eram: um elefante, uma árvore, uma foca etc.

Era muito doido, porque do ponto de vista clínico, o objetivo era estimular o meu cérebro e saber até onde ele poderia avançar. Eventualmente, eu parava de falar, perdia a força da mão e, num momento mais “tenso”, eu ficava com os lábios tremendo, sem conseguir falar nada. Ao fundo ouvia: “Doutor, perdeu!“, “Doutor, voltou!” e no meio da conversa, também escuto que poderia ser sedado novamente. “Depois conversamos mais, Felipe“.

E apago novamente, para só acordar novamente perto da meia-noite. “Felipe, a cirurgia acabou e vamos te transferir pra maca“. Acho que falei “beleza”, mas a real é que poderiam fazer o que quiserem, eu não consigo argumentar absolutamente nada.

Fui encaminhado para o CTI do hospital. Quando cheguei no quarto, a primeira coisa que fiz foi movimentar os pés e mãos, para ter uma ideia da possível sequela. Fiz as duas coisas sem dificuldades e isso me tranquilizou pra caramba. Lembro dos meus pais chegarem para me ver, mas eu estava grogue demais por conta da anestesia. Consegui interagir, fiquei super feliz em vê-los, mas foi isso.

Achava que a anestesia iria me dar uma noite deliciosa de sono, mas não foi o que aconteceu. Não achava posição, não conseguia virar, não podia beber água e a sonda estava me atrapalhando. Percalços de marinheiro de primeira viagem, naturalmente. Adicionalmente, o relógio estava parado, então não sabia que horas eram. Eventualmente, descobri uma posição que me permitiu dormir algumas horas.

Algumas horas. Nas descobertas da vida, saquei que CTIs são lugares propositalmente desenhados para não termos paz. Ainda bem. Fora o acompanhamento constante, toda hora alguém chega para medir a glicemia, pressão arterial e afins. Então não é um lugar para descansar. É para ser monitorado.

Pós-operatório

Na manhã de terça, recebi a visita do Dr. Marcelo e de outros médicos. Todos queriam saber como eu estava, como eu tinha passado a noite, meu estado geral. Carol chegou, foi lindo vê-la e uma lágrima escorreu quando passei o olho para ler todas as mensagens que havia perdido no dia anterior. “Seja gentil com você, Felipe e aproveite a jornada“. O grupo estava com coisas lindas, um alento danado.

Desci para fazer uma tomografia e uma ressonância (outra tragédia) e pude ir para o quarto, acompanhado da Carol. Foi absolutamente chocante ver os catéteres sendo retirados, especialmente o venoso central. O maior tubo que vi na vida. Alívio foi ver a sonda saindo também. Não há auto-estima que resista à sonda uretral.

Além de ver as mensagens, o legal da tecnologia é poder acompanhar as mudanças no corpo. Na terça-feira, foi quando comecei a ver as primeiras mudanças: além do curativo, o olho direito começando a inchar, além do lado direito do rosto, no geral. Do lado de dentro, tudo muito lento. Carol conta que andava pelos corredores do andar meio de lado, ainda meio bambo, mas conseguindo me movimentar.

Toda vez que deitava, precisava usar as perneiras para evitar trombose. Eu me sentia lento, mas bem. Cheio de suporte, carinho e quitutes que chegavam de quando em vez.

Dormi bastante de tarde, o que naturalmente comprometeu o sono da noite. No final do dia, o Dr. Marcelo nos visitou e disse que gostaria de me operar novamente no dia seguinte, quarta, 5/5. A ideia era tentar retirar o restinho do tumor. Dessa vez, seria uma cirurgia bem mais rápida, porque já sabiam dos acessos e tinham um conhecimento do procedimento e da cabecinha. Adicionalmente, estaria dormindo durante todo o período.

Pra quem já tinha lidado com a primeira intervenção, a segunda seria mais fácil. Falo dela na segunda-feira. 🙂

O caminho se faz é caminhando – Parte dois

“24/03/2021 – 20:45

Pessoal, boa noite! Imagino que vocês saibam porque estão aqui.

Há cerca de um mês, comecei a ter uns enjoos noturnos, que evoluíram pra uma convulsão na semana passada. Fiquei uns dias internados no hospital Alvorada em São Paulo, onde fiz uma batelada de exames. Tive alta no sábado e vim pra BH dar prosseguimento à investigação.

Ontem eu tive uma consulta com o neurologista de confiança da família. E o diagnóstico é de que estou com um tumor glial de baixo grau. Como se alocou em uma região pouco eloquente, eu não tenho nenhuma sequela. Além disso, ele é altamente operável, tem limites definidos e baixa taxa de crescimento.

Hoje conversamos com um neurocirurgião para fazer a avaliação da operação e próximos passos. Aparentemente, é possível fazer a dissecção total do tumor, mas como é do lado direito do cérebro e eu sou canhoto, nessa cirurgia preciso ser acordado em alguns momentos para ir “guiando” os médicos em relação às áreas afetadas. Na sexta, teremos uma reunião com outro neurocirurgião. A cirurgia deve acontecer nas próximas semanas.

Criamos o grupo para centralizar e facilitar as informações. Estou, – estamos – obviamente assustados, mas com muita confiança de que dará tudo certo.

Agradeço demais pelas mensagens de carinho e apoio. É muito bom contar com essa rede de afeto.

Vamos em frente, porque ainda há muita arte pra ser criada no mundo!”

Essa foi a primeira mensagem no grupo de Whatsapp que criamos para dar notícias para as pessoas. Batizamos de “FelipeCabeça – notícias”, acompanhado de uma foto minha aos quatro anos de idade, no melhor estilo motorista de ônibus. Até então, a ideia era contar para algumas pessoas e ir espalhando os fatos gradualmente. Quando vimos, já éramos 90 (o pico foi de 141), com muitos amigas e amigos da Escola da Serra, muitos amigos e amigas dos meus pais e da minha irmã, além dos familiares. Foi a forma que encontramos para poder espalhar a notícia e ter alguma forma de controle da narrativa. A ideia nunca foi espalhar a notícia por espalhar a notícia, sem ter o mínimo de respostas, porque eram várias, e que fomos descobrindo ao longo do caminho.

Também era a forma de processar a quantidade de informações e ir me acostumando com a ideia. Já tinha gasto muito tempo de análise desconstruindo meu papel de vítima, de “coitado de mim, que sou uma pessoa boa mas o mundo não me ajuda” e entender causas e consequências. Do alto de todo o meu privilégio, sou o único responsável pelas minhas decisões, escolhas e consequências. Compreender isso é de uma humildade e coragem tremendas e me ajudou muito em todo o processo.

Até o dia da cirurgia em si, foquei as minhas energias em duas coisas. A primeira, no processo de entender o que era o procedimento, quais os pontos mais relevantes, a estrutura necessária para isso e, claro, decidir pelo profissional que iria abrir essa cabecinha. O segundo ponto e acho que mais importante, era entender os sinais, o que estava acontecendo e aproveitar a oportunidade para recalibrar as minhas réguas, valores e expectativas. Basicamente entender o meu lugar no mundo, porque as coisas estavam muito descalibradas. Vou começar pela segunda parte.

Na noite do diagnóstico, eu lembro de ter comentado com meus pais e com a Natália algo do tipo: “sinto que eu sempre precisava provar alguma coisa para vocês”. Eu realmente achava isso, venho de uma família muito forte e não é segredo o quanto aprendo com eles. E somos muito sortudos em sermos bem livres para poder escolhermos nossos caminhos profissionais e fazer nossa história. Lentamente, percebi os presentes que a vida me deu. Leo Fares e d. Pilar nos criaram em estruturas muito claras e muito bonitas: sobre ética, relacionamentos e valores.

Ainda assim, sempre me coloquei numa posição muito cruel comigo. Eu sempre fui “cagão” de certa forma, nunca tinha me posicionado, uma dificuldade tremenda em falar “não” e ficava com medo de mostrar meu trabalho. Sei que era uma pessoa boa e não passo os outros pra trás. Era mais fácil me passar pra trás, me boicotar pra cacete e apagar o fato de que tenho criado uma massa de trabalho digna de nota. Eu acreditava viver abaixo do radar. Não valorizava o fato que tenho construído uma massa de trabalho digna de reconhecimento. Ainda assim, a ideia de fazer um grupo era quase risível pra mim, afinal de contas, estamos todos ocupados e ninguém vai ter tempo pra isso.

Outro ponto que não me ajudava é o meio de trabalho e contatos onde estou inserido. Sou metade da organização, preciso mostrar o meu trabalho no Linkedin e nas redes sociais, locais onde o diálogo simplesmente não existe. As pessoas só querem falar e não querem escutar, ninguém quer criar espaços para conversas. Em 2018, fiquei em um lugar muito ruim no Instagram, saí da plataforma e demorei um tempo para me situar e voltar. Até hoje, ainda faço um trabalho constante para não entrar de novo no loop horroroso da comparação e que só contribui para a intoxicação digital.

(Talvez seja tema para outro post, mas as redes sociais – todas elas – estão fundamentalmente quebradas. Não acreditem em influenciadores digitais, não acreditem em “top voices” e afins.)

De repente, tomo uma porrada desse porte. Automaticamente, aparece uma bifurcação na estrada, com uma questão do tipo “o que é importante nas redes sociais?” e não tem coisa importante pra resolver, na real. Eu virei a chave muito rápido para algumas coisas, especialmente olhar para feeds do Linkedin e Instagram e começar a entender e achar que tal postagem “é espuma”, “isso aqui é uma reclamação boba”, “isso aqui não vale tanto a pena”. Ou seja, filtrar o que é barulho do que é sinal. Ao mesmo tempo, comecei a me olhar com mais gentileza e valorizar a liberdade de carreira e as lições aprendidas ao longo do caminho. E ficou fácil entender que “não tem corrida pra correr, ou mal para desfazer ou mudar o que não precisa ser mudado”.

Existe a minha carreira ligeiramente pouco ortodoxa, da WB2 até a 42formas, passando pela Lazo, Addx, Labtest, Ciatech e WorldSkills, as pessoas que conheci, os trabalhos que fiz. Não passei ninguém pra trás, seguindo princípios e valores muito claros aprendidos com meu pai e minha mãe. Isso não apaga os percalços, os erros e os aprendizados, a “maturidade tardia” e talvez seja motivo para outro post, mas ter a liberdade para construir o próprio caminho é um enorme privilégio, muito bonito.

O que também foi de grande valia foi estender as mãos e aceitar ajuda. Se reconectar de alguma forma com a minha parca espiritualidade, lembrar das coisas que me fizeram bem, buscar caminhos para a maturidade emocional. E uma celebração para os “acidentes felizes” do caminho. Uma reunião de trabalho e que virou uma conversa rica sobre meditação e nossa existência, as longas caminhadas e fotos das caminhadas com a Tutu, as longas conversas e reflexões com a Carol e as aulas de meditação com a Helena.

Na tentativa louca de tentar controlar um mundo sem controle, não vemos como os ciclos se fecham e as coisas fazem sentido de alguma forma. De repente, o “grupo onde ninguém vai falar nada porque estamos todos ocupados” começa a ser recheado com mensagens bonitas, de gente que eu nem era tão próximo, e falando de coisas boas de mim, desejando uma boa recuperação, mentalizando coisas boas.

Isso mudou o jogo, isso mudou a abordagem sobre como eu iria encarar a situação e querer sair melhor do que entrei, se fosse possível. Flerta com a autoajuda e é a verdade. A única lição possível era entender que eu mereço sim me curar disso, e criar ferramentas e recursos para conseguir passar por isso. Ninguém vai resolver o meu problema, ninguém vai ser operado no meu lugar. Até queria, mas ninguém vai decidir quem vai operar por mim.

E uma vez que a poeira se assenta, a gente… vive. Eu trabalhei, fiz reunião, dei palestra, caminhei pra caramba e tinha dias que eu esquecia o que tinha na cabeça. Com o passar dos dias, me colocava em um lugar melhor do que estava no começo do processo. O medo passa. De verdade, o medo passa. 

Agora, sobre a primeira parte. Certa vez, fiz uma analogia pobre logo quando comecei a fazer análise, onde disse algo do tipo “vou entrar num túnel e não sei o que vai sair”. Mentira. Não demora muito e eu começo a entender os gatilhos, padrões de pensamento e novas formas de pensar. A análise te dá ferramentas para criar novos padrões, mais maturidade, mais inteligência emocional. Com algum tempo você sabe exatamente o que tem no túnel e como não cair nas mesmas armadilhas.

No entanto, a analogia funciona bem pra neurocirurgia, porque é um procedimento bem mais complexo e com muito mais fatores em jogo. Um dos pontos de atenção levantados foi o fato de eu ser canhoto e o tumor estar do lado direito do cérebro. Havia um risco de afetar a minha fala e a minha linguagem e deixar algumas sequelas. Formalmente, tínhamos várias perguntas:

  • Essa cirurgia poderia acontecer em Belo Horizonte? (Sim)
  • Qual era a necessidade/importância de existir uma máquina de ressonância magnética na sala? (Nenhuma)
  • É imperativo olhar fora do Brasil? (Não)
  • Quem são as pessoas mais capacitadas para lidar com isso? (Várias)

Tudo ficava mais “confuso” porque não era um procedimento comum. Se fosse a retirada de uma vesícula, ou outra cirurgia mais fácil, os processos seriam mais simples. Mas não era o caso. Eu não conhecia absolutamente ninguém que havia tido um caso parecido com o meu. Consultamos três neurocirurgiões: o Dr. Marcelo Vilela e o Dr. Rodrigo Faleiro, aqui de Belo Horizonte e o Dr. Paulo Niemeyer Filho, do Rio de Janeiro. Tive uma conversa com um médico do Sírio Libanês, em São Paulo. Também mandei e-mail para a universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, mas era completamente inviável do ponto de vista financeiro.

Aqui, um ponto de extrema ajuda foi contar com a presença do tio Ângelo, meu tio/padrinho, estudando muito sobre o tema e dando dicas e trazendo luz para questões importantes. Eu gosto de falar que ele é uma “pessoa renascentista” (ou Polímata, “aquele que aprendeu muito”) e trouxe muita clareza para pontos relevantes.

De cara, todos os médicos nos deixaram muito tranquilos com o fato de não precisarmos ter urgência para a operação. Provavelmente, o tumor havia crescido ao longo de muitos anos. Provavelmente, dois meses não trariam grande diferença no meu quadro. Com certeza, uma sintonia fina entre o meu quadro e a pandemia (infinita) da Covid deveria ser ajustada. Poderíamos esperar, um dos médicos disse que até seis meses, mas eu não tinha cabeça, nem condição pra isso. Eu queria resolver de alguma forma para voltar à vida “normal”, ou algo próxima dela.

A cada consulta com os médicos, ganhamos mais entendimento do procedimento e do processo.  Seria uma cirurgia longa, possivelmente de 12 horas, e eu precisaria estar acordado em parte dela para fazer a monitorização de partes do meu cérebro e evitar comprometer linguagem ou fala, embora uma sequela temporária não estivesse fora de cogitação. Cheguei a fazer uma consulta com a neuropsicóloga da equipe do Dr. Rodrigo para descobrir a dominância do cérebro sobre linguagem e fala e também se eu já tinha alguma sequela. Descobri um QI alto e que a memória estava levemente comprometida.

O tweet da decisão veio com uma fumaça branca de um conclave papal

Decidi pelo Dr. Marcelo Vilela depois de muita reflexão. De novo, sou privilegiado em poder escolher um dos melhores médicos do Brasil, ter o apoio da família e confiar no processo de que daria tudo certo. Batemos o martelo da data, 03/05, fiz exames de risco cirúrgico, pré-anestésico e uma outra ressonância para a monitorização do cérebro. A essa altura, já não tinha medo de como seria o procedimento, estava quase curioso.

Mentira, tinha vários medos, mas eles não eram tão relevantes comparados ao esforço e preparação que havia colocado até a chegada do momento.

Estava sendo gentil comigo, e isso faz uma diferença danada.

A mancha branca é (era) o tumor em formato de elipse.
A mancha branca é (era) o tumor em formato de elipse.

O caminho se faz é caminhando – Parte um

“Fodeu”.

Chegamos em Belo Horizonte no domingo, 21/03, marcamos os exames e consultas todos para a terça-feira, 23, e nos instalamos na casa do papai, tentando se ajustar à vida “normal”. Eu e Carol estávamos dormindo no seu quarto, Natália e Aloízio dividiam o que um dia foi o quarto dela. Papai ficou na casa da vovó.

Depois da convulsão, deitar e dormir deixaram de ser atividades comuns. Nunca tive problema para isso e não raro, demoro menos de dez minutos para roncar profundamente. Porém, depois da convulsão, tudo havia mudado. Não era normal pra mim e nem para quem estava comigo. Em uma das noites no hospital, levantei para ir ao banheiro e lembro da Natália levantando assustada, quase como um boneco de filme de terror – tronco em 90º – me perguntando se tinha acontecido alguma coisa. “Só vou fazer xixi, Tutu”.

Mensagem que mandei para meus amigos em 22/03 sobre o medo de dormir.

O Keppra, o anticonvulsivo que comecei a tomar ainda no hospital, super dava conta do recado. Só que isso não acaba com o medo de ter outra convulsão. Esse receio fica ali, rondando, mesmo sabendo que existe um medicamento fazendo o trabalho de proteção.

Como disse, o último mal estar – ou algo próximo dele – aconteceu enquanto esperava algum exame ainda no pronto atendimento do Hospital Alvorada. Dali em diante, nenhum susto. Ainda assim, no domingo e na segunda antes da consulta, eu ficava com medo de dormir, porque sabia que adormecer poderia significar outro episódio e outra convulsão. Carol também dormia mal, obviamente com medo de presenciar o que ela viu em São Paulo.

(Cenas que não podemos desver)

Mas nada demais aconteceu. Dormi bem e na terça, fui para uma consulta com o Dr. Paulo Caramelli. Ele foi o neurologista que acompanhou a dona Rachel na sua fase final, um homem incrível e que nos atendeu com muita atenção. Olhando pra trás, e relembrando o stress e a ansiedade, eu não lembro direito dos detalhes da consulta, mas foi a primeira das 322 vezes (e contando) que falei o que aconteceu, do primeiro mal estar até o momento que estava lá, sentado em seu consultório.

Talvez eu tenha omitido o Big Bang e a formação do Planeta Terra. Talvez não. Jamais saberemos.

Saí de lá direto para o hospital Mater Dei, do outro lado da rua, para fazer uma ressonância magnética com o Dr. Uedson Tazinaffo. Se a primeira ressonância foi desconfortável, essa foi muito pior.

Ficar uma hora na máquina de ressonância magnética foi uma das primeiras lições que tive de todo esse processo. Você precisa confiar nele, pois não há escapatória. Se em algum momento da vida adulta comecei a desenvolver uma claustrofobia, dar showzinho ou ficar desesperado não iriam me ajudar uma vez que eu entrasse no tubo.

Lembro de alguns episódios claustrofóbicos notáveis: o primeiro foi no vôo de volta do SXSW em 2016, quando tive uma crise que me fez saltar o companheiro da poltrona do corredor e correr pro fundo do avião, enjoado e com a pressão despencando. Foi o paradoxo do atendimento ao cliente. Um comissário abriu a porta do banheiro, me deu um saco de lixo preto, provavelmente o que ele iria embalar os restos do jantar, para vomitar, tipo “se vira aí, amigão“. Já a comissária mais velha lidou com mais profissionalismo. Me acalmou, ofereceu um copo de Ginger Ale para “acalmar o estômago“. Na época, achei que tinha uma crise de pânico, mas talvez tenha sido só claustrofóbica. Não sei.

Depois, em 2018, nas férias em família em Pernambuco. Estávamos indo para um show do Bel Marques em Carneiros e meu corpo disse “nem fodendo!” quando vi que sentaria no último assento desses carros de sete lugares, onde os bancos brotam do porta-malas.

Finalmente, pulamos para março de 2021, no famigerado Hospital Alvorada e a tal ressonância que iria confirmar a “cicatriz do AVC“. Foram 20 minutos de olhos fechados e desespero completo, onde meu cérebro alternava entre um lugar muito confortável e um lugar totalmente oposto, em uma briga constante entre “tá tudo dominado” e “não há a menor condição de sair daqui vivo“. Eventualmente, consegui sair do tubo na hora que injetaram o contraste e fui aos trancos e barrancos para o final do exame.

No episódio do Mater Dei, já haviam me avisado que o exame iria demorar cerca de uma hora. Seriam praticamente três exames em um só, quase o estado da arte da biópsia. E tudo bem, afinal, sou adulto, faço análise, faço reunião, dou palestra, sei lidar com essas coisas. E fui fazendo piadas, trocando de roupa, colocando o acesso para o contraste. Mandei foto pro grupo de amigos, mandei foto pra Carol, mas amigos e amigas, a Jurupoca (ou Jiripoca) cantou na hora que deitei no tubo.

Uma hora inteirinha de “não tem a menor condição de sair daqui vivo“. Uma hora inteirinha do cérebro fazendo piadas com ele mesmo. Uma hora inteirinha do cérebro falando “você acha que tá ruim? Pois pode piorar, seu otário”. Foi horrível. Absolutamente horrível. Olhos super fechados, umas lágrimas contidas e quando achava estava calmo, estava ainda mais ansioso. A máquina fazia uns barulhos que pareciam um show do The Prodigy, e aí, algum médico me chamou no alto falante:

– Felipe, o exame está acabando. Agora é hora de colocar o constraste.
– Por favor, me deixem sair do tubo pra respirar.
– Não podemos, você sai da posição e atrapalha o final do exame.
– Galera, eu estou chorando, peço por favor que me deixem tomar um ar.
– Eu entendo, mas não podemos fazer isso.

E assim foram os cinco ou dez minutos mais lentos da vida. Foi um alívio poder sair, embora com aquela sensação recorrente de “como alguém pode ter uma ereção nessa máquina?

O resto da tarde foi o resto da tarde. Estava em casa, livre do tubo, não tinha ideia do que poderia acontecer, não tinha ideia de quanto demorava a análise de uma ressonância desse porte, mas pensei: se estava medicado e estávamos investigando a cicatriz de um AVC, isso poderia tomar o tempo que fosse.

Mas…

Mensagem da secretária do Dr. Paulo Caramelli.

As coisas estavam andando mais rápido do que eu imaginava. E eu não havia gostado nada da ideia de um retorno rápido. Cheguei a comentar isso com a minha família antes de irmos para a consulta. Uma parte dizia não gostar nada dessa história, a outra, possivelmente o mecanismo de defesa, falava: “Pelo menos tira isso da cabeça logo e a vida segue”.

Chegamos, nós quatro no Caramelli, e eu não lembro da sequência exata a consulta. Lembro que ele disse algo parecido com a ideia de que não havia comprado a ideia de que eu havia tido um AVC e que desconfiava de um ponto epiléptico.

Eu olhava pra ele com uma cara de “olha só, que merda. A gente vai ficando velho e vai ficando com esses problemas”. Até que o Caramelli avançou no argumento, falou sobre quão completa era essa ressonância magnética e usou o termo “massa tumoral”.

“Você tem uma massa na cabeça”. É claro que tenho! Já viu o tamanho da minha cabeça? No começo, a frase “massa na cabeça” bateu e foi embora. Depois voltou. Voltou e ficou.

Olhava pro lado, e via a mamãe aos prantos. Do outro lado, Tutu e papai com uma cara de seriedade, mas era um sentimento total de tela azul. O Caramelli foi claro ao explicar que era um tumor glial de baixo grau, que se alocou em uma região pouco eloquente e que era altamente altamente operável, tem limites definidos e baixa taxa de crescimento. Poderia estar crescendo dentro de mim há anos.

Mas eu entrei num loop de descrença. “Eu sou muito novo”. Tive o mesmo sentimento dos dez anos de idade, entrando no Pronto Atendimento do João XXIII para suturar a cabeça. “Tem tanta gente no mundo, porque eu?” Demorei tanto pra encontrar minha voz, demorei tanto pra achar um caminho, quero montar minha loja de fotos, quero falar sobre aprendizagem, estou cheio de ideias e projetos e isso será interrompido dessa forma? Que loucura!

Quando dei o diagnóstico para o grupo de amigos

 

A mancha branca é (era) o tumor em formato de elipse.

Bateu e bateu bem errado. Entramos nos carros, acho que estávamos em dois, e eu lembro de montar um modo defensivo totalmente abrupto. Eu não queria fazer minha família sofrer. Eu não queria fazer a Carol sofrer. Falei com a Natália que se a Carol quisesse, ela poderia ir embora agora, porque estávamos entrando em um território desconhecido e eu não queria que ela passasse por isso. E por um lado, eu tinha certeza que ia morrer e quem precisa de planos quando se vai morrer?

Tutu é um poço de conhecimento, é a minha xamã em formação. Logo de cara, ainda no carro me deu um chacoalhão do tipo: “Agora é hora de por os planos pra frente“. Contar pra Carol foi uma das coisas mais tristes do mundo. Ela havia tido um dia horrível, entupido de reuniões. Quando chegou na sala e viu nós quatro com uma cara de “falta de chão”, ficou sem saber como reagir. Ninguém sabe como reagir dessa forma. Dela, ganhei outro chacoalhão. Não havia a menor chance dela ir embora.

(Eu sou uma pessoa de sorte!)

Terminamos a terça-feira com uma consulta marcada com o primeiro cirurgião, o Dr. Marcelo Vilela, traçamos uma estratégia grosseira de comunicação, avisei a família e pessoas mais próximas. Comecei a receber tanto carinho e tanta mensagem bonita, coisas que jamais esquecerei, e que me fizeram dormir um pouco menos angustiado do que o começo da noite.  Esse negócio tinha que dar certo, a conta simplesmente não fechava.

Antes de desligar o telefone, escrevi para meus pais e para a Tutu: Pessoal, vai ser desafiador, difícil e a porra toda, mas vai dar certo. Tudo que “nóis tem é nóis”.

(Narrador: errado ele não estava).

A gente estava só começando.

Mancha na Tomografia, indicada pelo amigo Rodrigo Lanna.
Mancha na Tomografia, indicada pelo amigo Rodrigo Lanna.

O caminho se faz é caminhando – Parte zero

Prefácio

Esta história é longa e ainda está em construção. Aos poucos, as perguntas tornam-se respostas e as coisas ganham mais clareza. Escrever é a forma que eu organizo o meu mundo, e tinha muita coisa represada aqui.

O objetivo é compartilhar com vocês a forma como estou encarando todo o processo, como me cerquei de pessoas e energias boas e, sim, como posso (podemos) aproveitar esses momentos para colocar a vida em perspectiva e valorizar o que realmente importa.

Espero que gostem do relato e que ajude de alguma forma. Sejam pacientes e tenham paciência comigo. Bebam água.

Capítulo Zero

Aos 38 anos e seis meses de vida, eu só tinha feito sutura por três motivos. Aos 21 e depois dos 30, quando precisei arrancar dentes e colocar uma prótese de titânio. Dos 17 pra 18, quando quase virei sócio honorário da Dr. Scholl e fiz todo tipo de solução possível pra resolver um problema grave de unha encravada. Finalmente aos dez, quando levei dois pontos na cabeça porque escorreguei e bati a cabeça em uma árvore na Escola da Serra, enquanto corria de duas meninas que eram apaixonadas por mim (ah, quanta inocência!).

Aliás, no caso do corte na cabeça, eu dei um showzinho com meu bom e velho pai a caminho do João XXIII, o pronto socorro de Belo Horizonte. Lembro de chegar e gritar “Dois milhões de pessoas moram em BH e quem é escolhido para tomar ponto na cabeça? Eu!”

No papel de paciente, essa era a minha experiência com hospitais e similares. Eu não tenho dor de cabeça, mal tomo medicamentos, durmo bem, sou uma pessoa de sorte. Eventualmente aparecia alguma sinusite ou “virose”, mas o procedimento sempre foi o mesmo. Entrava no hospital, resolvia o problema em algumas horas e ia embora medicado pra casa. Sempre uma linha reta. Por isso, fiquei sem entender quando, no comecinho da manhã de 17 de março, a plantonista do Hospital Alvorada me disse: “Felipe, sua tomografia está alterada e por isso vamos te internar”.

Oi?

Vou contextualizar.

No comecinho de fevereiro, tive um mal estar noturno absurdamente esquisito. Estava em Minas, na divisa entre Nova Lima e Itabirito, que tanto me acolheu durante o começo da pandemia no ano passado. No meio da madrugada, do nada, acordei com o estômago revirado, enjoo e ânsia de vômito. Era uma dor completamente nova pra mim.

Ardia, doía, parecia um bolo crescendo dentro da barriga. Não achava nenhuma posição para dormir e, depois de revirar na cama por alguns minutos, a dor passou. Como se nada tivesse acontecido, voltei a dormir.

Acordei com a sensação de ressaca e associei ao churrasco e à cerveja do dia anterior. O Bizafra, meu primo, havia feito uma visita no dia, a gente fez um churrasco, tomamos algumas cervejas e só. Não foi nada fora do extraordinário, mas a dor tinha sido muito viva. Não era sonho ou pesadelo. Tinha sido real. “Voltando pra São Paulo, preciso olhar um gastroenterologista e entender o que está rolando”.

Pra quem nunca teve nada, assusta. Que merda de dor havia sido essa? Por que tive aquilo? Vai aparecer de novo? Preciso me preocupar ou não? A nossa ignorância é tanta e ficamos tão surdos ouvindo as coisas que não importam que eventualmente, largamos as coisas pra lá. Tive uma dificuldade para ir ao banheiro, e eventualmente tudo voltou ao normal. Depois de uns dias, o mal estar sumiu.

Caralho, que susto. Um dia vou ao gastro e resolvo isso.

Porém, do jeito que veio e foi, o “acontecimento” – ainda não achei um termo bom pra isso – resolveu voltar e ficar. Sempre de noite e sempre da mesma forma. Era pegar no sono e o enjoo noturno aparecia. Junto, vinham a ânsia de vômito, um formigamento no braço esquerdo, gosto terroso na boca como bônus, e pensamentos delirantes parecidos com os de febre alta, mas sem febre alta.

É curioso como tenho dificuldade em definir a parte da febre alta. O jeito mais fácil é lembrar de um episódio de febrão que tive quando era novinho e lembrava que delirava imaginando casas pequenas sendo esmagadas por pedras muito grandes. Coisas muito fora de proporção e que assustavam.

Era muito vívido, muito real. Mas nunca demorava. Do mesmo jeito que vinha, ia embora. O sentimento não durava mais do que um minuto, se tanto. Cheguei a comentar com meus pais e havia associado ao stress. Dentro de uma linha do tempo, já estamos no meio de fevereiro, um pouco depois do carnaval. Eu e Carol havíamos viajado para Santo Antônio do Pinhal e tinha tido noites boas, sem dores ou sustos.

Continuava firme de que era stress ou ansiedade. Muita coisa acontecendo no trabalho, vovó Rachel estava mal (e respirou para sempre em 21/02), não estava achando tempo para treinar, D. Pilar considerando desmontar o apartamento na Bela Vista, e ao mesmo tempo que ela achava um novo lugar para morar em Belo Horizonte, eu precisava achar um apartamento em São Paulo. Isso eventualmente se acertou com uma oferta generosa do João Lacerda. Um apartamento do tamanho certo, no local certo, e um problema a menos no meio do caos.

Nada estava normal, nada estava “estável” e ainda assim, ao invés de entender a dualidade e a inconstância que a vida é, eu continuava em um estado de ansiedade. A sensação vinha toda noite, já em um ponto onde eu esperava aparecer. Sempre seguindo um mesmo padrão.

Meu maior medo era não assustar a Carol. Nem precisei me esforçar, porque no sábado, 13/03, tive o mal estar logo antes dela dormir e eu não consegui explicar o que havia acontecido. Na minha cabeça o processo era conhecido, mas como era algo misterioso, tive muita dificuldade em explicar o que havia sentido. Dias depois, tive a pior sensação da vida até agora.

O dia 17 de março foi um dia produtivo, porém difícil. Choveu bastante em São Paulo e era o quinto dia na casa nova. Ainda estava no processo de tirar a cidadania de Moema, afinal havia me tornado um moemer convicto, morando a cinco quarteirões de distância da Carol.

Jantamos, tomamos duas cervejas e antes da meia noite, estávamos deitados para dormir e o mal estar veio. Na minha cabeça foi tudo muito rápido. Só lembro de girar o corpo com o mandíbula travada, gemer alguma coisa para a Carol e apagar completamente.

Apagão total e um período indeterminado de silêncio e paz.

Acordo meia hora depois, super enjoado, querendo ir ao banheiro vomitar. Quando começo a entender a situação, olho pra Carol me segurando na cama e me pedindo para ficar quieto. “Você teve uma convulsão e o Samu está chegando”, ela me disse.

– Amor, eu preciso ir ao banheiro vomitar.
– Vomita no chão, a gente resolve isso depois. Fica quieto!

Ao fundo, eu ouvia o final da ligação e acho que a ambulância apareceu um tempinho depois. Eu estava puto, era a segunda vez que eu ia dormir no apartamento novo e eu tinha começado com esse cartão de visitas.

Fui recobrando os sentidos, o enjoo passava e até a hora que o Samu efetivamente chegou, eu já estava bem. Desci sem assistência, entrei na ambulância e no Hospital Alvorada sem nenhuma assistência. Batia um papo com a equipe de enfermagem como se nada tivesse acontecido.

(Aliás, esse é meu mecanismo de defesa, começo a falar sem freio).

Eu melhorei e estava zerado como em todas as outras vezes que havia sofrido do mal estar. Mas dessa vez, eu tive convulsão. Muito menos assustado do que a Carol, óbvio, mas assustado com o fato de ter convulsionado.

Chegamos, fiz uma batelada de exames de sangue, urina, raio X do tórax (imagino que por conta da Covid) e tomografia computadorizada. E esperamos. Esperamos pra caramba. Na minha parca experiência hospitalar, eu só imaginava que a quinta-feira seria terrível.

Carol entupida de reuniões, o meu dia começaria às 8h, e a gente ali, preso no hospital esperando os resultados dos exames. No processo de espera, tive tempo ainda pra um outro rápido episódio de mal estar, sem convulsão e sem nada.

Até que às 6h, a plantonista nos chama e fala “Felipe, sua tomografia está alterada e por isso vamos te internar”.

Oi? Como assim, moça? Você tá bem? Porque eu tô ótimo. Que mancha é essa que você achou? Checa de novo.

Segundo a plantonista, a teoria era que eu tive um AVC em uma região não eloquente do cérebro e a mancha na tomografia, assim como a convulsão, eram uma cicatriz desse evento. Por um lado, aquilo não fazia o menor sentido pra mim, afinal um AVC sempre foi sinônimo de sequela e eu estava ótimo. Por outro lado, isso fazia sentido porque ajudava a explicar a sequência de eventos que havia ocorrido desde fevereiro.

Mancha na Tomografia, indicada pelo amigo Rodrigo Lanna.

 

 

Mensagem que mandei para o grupo dos meus amigos enquanto esperava um quarto

 

Mensagem que mandei para Dona Pilar quando descobri que seria internado.

Consegui avisar a família, o Marcos, e os amigos mais próximos antes da bateria do telefone morrer.

Super legal, né? A primeira emergência da vida e deixo todo mundo sem notícias. Enquanto eu esperava um quarto, Carol foi nas duas casas e voltou com roupas, carregador do meu telefone e com a notícia de que Natália e Aloízio estavam voando de Belo Horizonte para dar assistência. Quando religuei o telefone, o grupo dos meus amigos tinha um caminhão de mensagens, liguei para o papai e ele disse que nunca esteve tão feliz em falar comigo.

Tratei de tentar tranquilizar todo mundo. Eu era uma compilação de memes ambulante, já medicado e dormindo bem. Assustado com a ideia de ter tido um AVC, mas feliz em estar bem, sem sequelas e vivo.

O resto da quinta e a sexta-feira foram tranquilos. Fiz uma batelada de exames, ultrassom de abdômen e carótida, ecocardiograma e a primeira visita à ressonância magnética.

Uma das experiências mais claustrofóbicas da vida e, como disse no grupo dos meus amigos, é difícil imaginar alguém conseguir ter uma ereção dentro de uma máquina que faz barulhos que misturam um show da banda “Man or Astroman?” com a UVB-76, a rádio espiã russa. A ressonância magnética merece um capítulo próprio, imagino, porque eu acho uma experiência muito desconfortável. E já passei por cinco delas e contando.

E tudo era muito esquisito, porque obviamente havia uma aura de seriedade no meu caso, seja com os cuidados, exames e medicamentos, mas eu me sentia perfeitamente bem. Falando sem dificuldades, coerente igual sempre me senti. Agora, medicado, assistido e sem saber a razão de estar internado em um hospital.

Mas o fato é que acabei recebendo alta no sábado, 20/03. Saí do hospital com o diagnóstico de que eu tive um micro AVC, abscesso ou isquemia em algum momento da vida, e que aquilo havia se tornado um ponto epilético. Poderia investigar fora do hospital e, por isso, começamos a coordenar a vinda para Belo Horizonte. Embarcamos, nós 4, no domingo, 21.

Afinal, toda família tem uma extensa rede de informantes, com a minha não é diferente. Enquanto eu estava no hospital, ligações estavam sendo feitas e opiniões sendo colhidas. O clínico geral da mamãe falou que essa dor de estômago e formigamento eram coisas do cérebro mesmo. Papai estava em contato constante com o Dr. Paulo Caramelli, neurologista que atendeu a vovó na fase final da vida. E ele foi enfático: “pode ser muita coisa. Até tumoral“.

Opinião compartilhada por um médico amigo da minha tia. “Uma mancha desse tamanho é um tumor ou sinal de uso extenso de drogas“. Eu ri desse diagnóstico. Caretinha que sou, na pior das hipóteses, “uso extenso de drogas” significaria ter bebido alguma vodka ou cachaça de qualidade duvidosa. Eu poderia rir dessa pessoa.

Ou de mim.

Fachada do Austin Convention Center em março de 2018.
Fachada do Austin Convention Center em março de 2018.

Reflexões e aprendizados do SXSW EDU 2021

(Ou: novos tempos precisam de novos acordos)

O ano de 2021 marca a quinta vez que participo do SXSW EDU. Acho que já contei a história, mas conto de novo. Descobri o festival de 2016, quando pesquisava sobre o SXSW Interactive, o “irmão maior”. Achava que teria algum conteúdo relacionado à educação corporativa e comprei o ingresso no impulso. Tinha um total de zero conteúdos. Z-E-R-O. Mas isso não me impediu de voltar para Austin religiosamente nos anos seguintes. Toda a programação foi cancelada em 2020 e a experiência desse ano foi diferente, porque o festival foi diferente: três dias totalmente online.

Ainda assim, um furacão de informações e conexões na cabeça e que compartilhei como deu nos últimos dias. No canal da 42formas no youtube, fizemos três lives com pessoas convidadas. No Chicken or Pasta, escrevi sobre a experiência do festival online e três lições baseadas no meu recorte de sessões: a importância de falarmos sobre traumas e dores na volta à vida normal, não existe solução única para a educação e é preciso repensar (de vez) a formação para o trabalho.

Finalmente, se vídeo for a sua onda, praticamente o mesmo conteúdo do C’n’P está disponível no vídeo abaixo.

Espero que gostem!

D. Rachel e Tutu em 1985.
D. Rachel e Tutu em 1985.

Para d. Rachel

“Feche seus olhos e conte até um. Isso é quanto tempo ‘para sempre’ seria”.

Dona Rachel contou até um na noite de domingo, aos 94 anos. Em paz, “como um passarinho”, ela diria. Um alivio para nós e para ela e ainda bem que não foi diferente. Quem viveu a vida de maneira tão enorme, não merecia passar pela fase final do mal de Alzheimer. Até então, enfrentou com uma coragem tremenda.

Foi um privilégio poder realizar essa coragem, ultimamente. Em vários momentos, isso foi o que me faltou para vê-la e para entender a desconexão que a doença traz. “As luzes estão acesas, mas ninguém está lá”. Papai fala que a vida vale pelos bons encontros e agora tenho certeza que precisamos aproveitá-los até o final.

Vovó foi nossa companhia de viagem para Bonito, João Pessoa e Buenos Aires. Juntava as pessoas nos saudosos almoços árabes nas sextas-feiras, era a pianista que dividiu um sem números de execuções d’”O bife”, a única música que sei tocar no piano. Sua casa serviu de apoio e repouso para sua mãe e suas tias já na fase final da vida. Na frente culinária, certa vez D. Rachel quis me convencer de que meu macarrão deveria estar al dente. Não consegui argumentar que o macarrão no caso era um miojo, onde as regras não se aplicam.

Não conheci o vovô Anuar, que morreu três anos antes de eu nascer. Do lado materno, a vovó Teteca morreu subitamente em 1995. Seis anos depois, foi a vez do Pancho. Agora, nos despedimos da D. Rachel. A idade não muda a tristeza e a saudade, a gente só aprende a processar as coisas de outra forma.

Finalmente, esses últimos dias foram importantes para celebrar os bons encontros, as nossas origens e nossos caminhos. Tenho muito orgulho e alegria de ser neto da d. Rachel e do dr. Anuar, do dr. José e da d. Therezinha. Preciso aprender todo dia com a coragem, a resiliência e a vontade de mudar o mundo, cada um da sua forma, que eles tinham. Aprendo todo dia também sendo filho do Léo e da Pilar e irmão da Natália.

Agradeço por isso sempre.

D. Rachel deixa seus seis filhos, nove netos, quatro bisnetos e um legado do tamanho do mundo para passarmos pra frente.

(Eu amo essa foto. Ela e a Natalia em 1985)

Morris Day e Prince
Morris Day e Prince

Quem controla o processo criativo?

Antes de começarmos, quero que vocês apreciem a melhor música feita pelo Prince. Não estou falando de “Purple Rain”, ou “Kiss”, nem “When Doves Cry”. Estou falando de “777-9311”. Ela é a prova de que o processo criativo é lindo e também te prega algumas peças.

 

No começo dos anos 1980, Prince aproveitou uma cláusula em seu contrato com a Warner Records, que o permitia recrutar e produzir artistas para a gravadora, para criar dois grupos: The Time, um grupo de funk, soul e R&B e o Vanity 6, um trio vocal feminino. Foi uma saída encontrada para dar vazão à sua produção criativa, dando espaço para outros gêneros e experimentos.

(Na década de 1990, a propriedade criativa foi tema central da longa batalha judicial entre Prince e a própria Warner Records. Ele queria gravar mais discos do que o seu contrato permitia e também queria ser dono das gravações originais. Foi daí que surgiu a história onde ele muda de nome, sendo chamado de “O Artista”, “o artista que foi conhecido por Prince”, um símbolo etc. Mas isso é outra história)

Nas duas bandas, Prince fazia tudo: composição, arranjos, letras. Além disso, gravava todos os instrumentos. As bandas não tinham nenhuma liberdade, só eram obrigadas a executar no palco o que já estava pronto.

Um dos frutos dessa produção foi “777-9311”. A primeira vez que ouvi falar dela foi nesse vídeo da baterista Pocket Queen, onde ela fala de cinco músicas que mudaram seu estilo de tocar. Não sabia quem era The Time ou o Morris Day, o líder da banda. Nem imaginava que era fruto da cabeça do Prince.

Linn LM-1

É uma música grandiosa, extravagante e diferente do trabalho do Prince até então. Começa com um groove de bateria altamente complicado, feito em uma drum machine Linn LM-1 (foto ao lado). A história é que a programação da bateria foi feita por David Garibaldi, baterista do Tower of Power, mas deu algum problema e deixaram do jeito que ficou. Bateristas ao redor do mundo sofrem para tocar. A música também tem uma linha de baixo absolutamente incrível, camadas de instrumentos e um grande solo de guitarra.

Talvez seja uma das melhores músicas compostas e executadas por Prince, mas que está no catálogo de outra banda. Ainda assim, serviu de experimentação para seu próximo álbum e que foi sua obra prima, “Purple Rain”.

Mas há o outro lado. O desconforto dos músicos do The Time era fato conhecido. Sem liberdade criativa, e obrigados a tocar exatamente o que havia sido composto e gravado, a única saída era fazer o melhor show possível. E eles fizeram isso sendo o ato de abertura dos shows do Prince em 1981. “O único poder que tínhamos eram os 45 minutos em cima do palco, porque era uma ditadura onde o Prince controlava tudo“, disse certa vez o guitarrista Jesse Johnson.

A tensão chegou em um ponto sem retorno. Prince chegou a afirmar que o The Time era a única banda que ele tinha medo, em um clássico caso da criatura ganhando do criador. Na turnê de “1999”, o disco anterior ao “Purple Rain”, o The Time foi retirado dos shows. A história seguiu em formato de “Y”. Enquanto a banda eventualmente perdeu potência, Prince virou o artista que conhecemos.

Gosto dessa história porque fiquei apaixonado pela música e tenho lido bastante sobre a vida do Prince. Não posso falar absolutamente nada sobre o processo criativo de uma das pessoas mais criativas do mundo, mas com o olhar de hoje, certamente havia espaço para os dois lados no mercado. No entanto, não acho produtivo sentar-se em cima de uma ideia, sem dar margem para ela andar por si só, criar ramificações e gerar coisas novas. E o grande pulo do processo criativo é a capacidade de sempre ir atrás da “próxima coisa nova”, a capacidade de gerar inovação.

Paradoxalmente, isso foi o que Prince fez durante a sua vida toda.

 

O ano em que aprendi a criar sentido para as coisas

Todo final de ano é a mesma coisa. Venho aqui nesse espaço e escrevo várias linhas sobre meu ano. As coisas boas, as ruins, os desafios, o que quero daqui pro ano seguinte. Para 2020, confesso que estava meio sem vontade de escrever. Cheguei nesse final de ano esgotado, mal consegui escrever as mensagens de boas festas para as pessoas, quiçá terminar esse aqui.

Mas depois pensei que seria importante para a posteridade. Esse blog atingiu a maioridade, tem muita coisa escrita aqui e esse ano não poderia ficar de fora.

Papai, Tutu e eu, no começo do ano.

E enfim, 2020 talvez tenha me provado que o niilismo otimista é uma verdade, ponto. Uma pessoa lerá esse texto e ficará bem puta com isso. Mas é o que é. Em um mundo sem sentido, precisamos achar e criar os nossos sentidos. No meu caso, foi ter a certeza de que consegui andar pra frente, quando tudo parecia ser muito difícil.

Ter essa noção é reconfortante de certa forma, especialmente pra quem sempre gostou de se autossabotar ou de achar que era um “forasteiro” em determinados grupos sociais. Ter a certeza de que andei pra frente em 2020 é ainda mais especial. O ano mais difícil de todos e um ano bem diferente do que eu havia imaginado.

(Acabei de perceber que escrevi a mesma coisa no texto do ano passado. Só que esse “diferente do que havíamos imaginado” foi diferente do que eu havia imaginado no fim de 2019. Ou as coisas mudam rápido ou sou péssimo em fazer previsões de ano novo.)

Grande parte do ano foi de angústia, ansiedade e aflição. Primeiro pela pandemia. E como se não bastasse isso, também existem os perrengues diversos ao nosso redor, sejam os nossos ou os de gente querida. Tem sido complicado entender os dias com a falta de liderança, os mais de 190 mil mortos e vendo gente conhecida – e esclarecida, espero – aglomerando, fazendo festa, ignorando o uso de máscaras. Mas como dizia o Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí é que não sai nada”.

E vejam como é fácil ser seduzido pelas coisas que nos fazem mal. No meu caso, abrir as redes sociais e os portais, doido para consumir a última merda dita pelo presidente ou ver fotos de festinhas e aglomerações de conhecidos.

Mais fácil ainda é pegar todo esse contexto e assumir que a “falta de sentido” significa “desistir das esperanças” ou “largar tudo de lado”. Não, não é. De novo, esse ano foi a oportunidade de dar sentido para as minhas coisas e fazer o que era possível: andar pra frente. Foi difícil, desafiador, estressante, mas estou feliz comigo mesmo.

Profissionalmente, foi um ano recheado de desconfortos, bons e ruins. Fiz duas curadorias lindas para o SESI junto com a d. Pilar e a Cida Lacerda, fiz uma consultoria para um projeto super legal de uma escola de governo, manobramos a 42formas para um caminho mais estratégico, lançamos e pilotamos um produto, o Núcleo de Aprendizagem Ágil, eu e o Diego desenvolvemos um conteúdo incrível sobre mundo complexo e jazz. Fui mestre de cerimônias e moderador de conversas, aprendi bastante.

Quando olho pra trás, dá um orgulho danado. Pude conhecer gente super inteligente, pessoas que colocaram a barra lá em cima e que me assustaram no começo, mas não fugi da responsabilidade. É muita coisa em pouco tempo e é difícil ver o progresso no meio do turbilhão, mas está aí, registrado.

Esse ano não teve muita música. Por motivos óbvios, paramos os ensaios em março, mas continuamos conversando e nos apoiando pelo zoom. Trocamos as aulas de jazz e Beatles por bate-papos ricos sobre gravações. Até arriscamos gravar algumas canções. Mesmo não tocando muito, por conta de uma das curadorias, consegui trazer o baixista Victor Wooten pra falar em um dos seminários e dois dias depois, tive a honra de tocar com ele.

Também treinei pouco crossfit. Ganhei um pouco de peso, perdi força, mas tudo bem. Isso a gente corre atrás na hora que as coisas assentarem.

O que me trouxe sanidade foram os amigos, a família e ocupar a cabeça. Antes da pandemia, teve uma bela viagem em família para Miami no começo do ano. Depois, fiquei meses na minha comuna – o lote com as casas da minha mãe, do meu tio e de um primo – entre Itabirito e Nova Lima. Dei sentido para as coisas lendo, estudando, ficando horas e horas na marcenaria ou fotografando a lua e o céu. No meio tempo, as conversas com amigos, num esforço constante de todas as partes para saber quem estava bem, quem precisava de ajuda. 

E dentro das coisas mais improváveis e menos ortodoxas para uma pandemia, consegui redescobrir o amor. Com a Carol, 2020 começou dividindo o mesmo voo de Belo Horizonte para São Paulo, passou por um aniversário, um bar logo antes do pseudo-lockdown e do desespero começar. Viemos os dois para Minas. Nesse meio tempo, foram dezenas de horas de conversa, centenas de mensagens trocadas e, em maio, sou surpreendido com uma declaração. Deu certo. Desde então, tenho aprendido, crescido e amadurecido a cada dia. Uma sorte danada e uma história linda que merece ser contada com mais calma.

Talvez a Carol não goste de ler sobre o “niilismo otimista”, já tivemos boas conversas sobre esse tema e há uma discordância sobre “achar sentido nas coisas”, mas não tem jeito, foi a minha melhor definição do ano. Conscientemente ou não, foi a forma que achei para cumprir a promessa feita no ano passado: “soar mais como eu mesmo”.

Não estou nem perto de chegar no final desse processo, mas de novo, acho que consegui caminhar ainda mais na direção que acredito.

Feliz ano novo, pessoal!

As tábuas e onde eu aprendo na internet

Outro dia, o Conrado Schlochauer compilou a lista das 10 ferramentas que ele mais usa para aprender. Fez parte da pesquisa anual da Jane Hart sobre as ferramentas mais utilizadas para isso. A seleção do conrado é super interessante e eu compartilho várias das ferramentas, especialmente o Google, Twitter, Kindle e Whatsapp.

(E antes do tema desse post, um pequeno caso sobre o Whatsapp. Estou na reta final de uma consultoria e ontem, uma pergunta do outro consultor sobre um fluxo virou uma discussão riquíssima sobre processos, metodologia e abordagem entre nós dois e o cliente. A gente aprende MUITO ali, sem dúvidas.)

Voltando ao caso, se não estou enganado, essas são as minhas tábuas 10 até 15. Elas foram feitas com diversas madeiras que outrora foram móveis e pisos da casa do meu tio: peroba, ipê, algumas chapas de pinus que comprei.


Junto com a orientação do meu tio, colocar a mão na massa, a tentativa e o erro e as experiências anteriores, usei outras três tecnologias que uso para aprender: instagram, youtube e reddit.

(Há três anos, falei que os dois últimos eram locais “improváveis” para aprender algo. Admito que foi um título caça-cliques. A gente aprende horrores ali).

No caso dessas tábuas, o instagram foi fundamental para a parte criativa do processo. Quando educamos o algoritmo, o resultado é ótimo. Comecei a seguir perfis de marceneiros e pessoas que fazem tábuas e além dessas referências, chequei alguns vídeos sobre “como fazer”. Dentro do meu processo de aprendizado, tenho percebido como estou mais tolerante ao IGTV, mesmo com seus problemas de navegação e na telinha pequena do telefone.

Por isso, pra outras referências sobre construção e informações mais detalhadas, acabo recorrendo ao youtube. Além de checar meus makers favoritos, Jimmy diResta, Bob Clagett, Chris Salomone, busquei vídeos para resolver algumas dúvidas sobre a primeira camada de óleo mineral, o quanto devo lixar e qual lixa usar, e como fazer detalhes e acabamento usando uma tupia.

No Reddit, dentro de uma thread dedicada às tábuas de carne, achei a receita para fazer a mistura de cera de abelha e óleo mineral que usei para finalizar o trabalho. Aliás, essa pasta pode ser utilizada em qualquer utensílio de madeira que você usa na cozinha. Basta derreter uma parte da cera para três de óleo e esperar esfriar. Fiz isso em banho-maria. 🙂

Falando das tábuas, é certo que existem centenas de oportunidades para melhoria e o próximo lote sairá melhor do que esse. E sobre as ferramentas, é muito interessante entender e aprender as coisas com pessoas interessadas feito nós. Algumas das referências eram profissionais, gente que vive de fazer tábua pra viver. Porém muitas delas vieram de gente feito eu, alguém curioso, não necessariamente especialista no tema, mas que busca os caminhos do processo de aprendizagem.