O Círculo Musical da Construção de Soluções nasceu de um comentário no Linkedin e é baseado na minha formação, experiência e trajetória profissionais e nas minhas vivências como baterista semiprofissional. Tocar com diferentes pessoas e em diferentes situações, me ajudou a criar uma bagagem de recursos diversos relacionados à criatividade, colaboração e aprendizagem que consigo transferir para outros aspectos e cenários.
O objetivo desta série de artigos é detalhar cada um dos quatro elementos que compõem o círculo: Prática, Repertório e Improvisação, além do bônus Silêncio. Vou trazer exemplos da minha vivência, referências e trechos de entrevistas de artistas e dicas para aplicar a “mentalidade musical” na construção de soluções no dia a dia das organizações.
Sobre Repertório
Eu sinto que as dimensões do Repertório e da Prática estão muito conectadas por conta da aplicação e desenvolvimento das habilidades técnicas e das habilidades sociais.
A construção e expansão da prateleira de grooves, viradas, técnicas e dinâmicas acontece porque eu escuto, estudo e pratico música. A prateleira de colaboração, comunicação, criticidade, análise e negociação aumenta quando estou criando músicas com as pessoas, definindo um repertório de músicas para serem executadas pela banda, tentando vender um show ou ouvindo o feedback de quem me assistiu. (Quase a forma musical da metodologia CEP+R, criada por Alex Bretas e Conrado Schlochauer.)
Essa estante do repertório individual é que vai me ajudar a tomar as melhores decisões para:
- Tocar a música de uma forma interessante para mim, para a banda e para o público;
- Criar um espaço de inovação e desenvolvimento individual e coletivo;
- Improvisar e lidar com os imprevistos;
Nessa série sobre tocar em uma banda, trago situações musicais. Mas alguns são assustadoramente similares às experiências que tive no mundo corporativo. Um bom exemplo é a criação de um repertório de músicas.
Seja para decidir as músicas covers, criar músicas autorais ou uma mistura das duas coisas, um dilema comum entre bandas e organizações aparece: o balanço entre estabilidade e experimentação. Ou seja, como montar um repertório que consiga fazer o público gostar do som, mas que também não limite o espaço para a inovação? O processo de criação da lista de músicas começa com um brainstorming coletivo e presencial (se possível), onde é importante criar um ambiente de segurança para que as ideias e sugestões saiam sem amarras.
No Balboa, minha banda de pop-rock, funk e soul entre 2004 e 2007, as músicas eram escolhidas para garantir shows todos os finais de semana, ao mesmo tempo que não enjoasse quem nos assistia com frequência. Entre músicas próprias, do Jota Quest e do Tim Maia, colocamos “Bete Balanço” do Barão Vermelho e “Vertigo” do U2 como a parte mais rock’n’roll do repertório.
Por outro lado, a Watermelon Band, minha banda em São Paulo, fazia uma apresentação anual, onde tocamos um repertório de jazz e outro de rock. A escolha é baseada no nível de dificuldade e satisfação na execução das músicas. Queremos nos divertir tocando, mas buscamos desafios que nos façam evoluir.
Por exemplo, “Vera Cruz” do Milton Nascimento e “Long Distance Runaround” do Yes eram músicas que pareciam fadadas ao fracasso no primeiro ensaio: eu ficava bem perdido em algumas partes, não conseguia tocar junto com as outras pessoas… uma tragédia. Porém, foram duas canções lindamente executadas no dia do show por conta da repetição, do aperfeiçoamento da prática.
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John Blackwell (1973-2017)
Para tocar de uma forma que seja interessante para mim, para a banda e o público, sigo fielmente o que John Blackwell, baterista que tocou com Prince e Justin Timberlake, fala no trailer dessa videoaula:
“Os artistas te contratam para tocar no tempo. E se alguém falar: ‘vamos ouvir a ideia do baterista’, aí tudo bem. Se não, aprenda a canção, respeite a música e toque-a da forma como deve ser tocada.”
Para mim, em um show de pop e rock, “tocar a música como deve ser tocada” é fazer o simples: criar a fundação para que a banda fique confortável, respeitar o que foi ensaiado, estar atento e pensar em soluções quando algo sair dos planos. A regra se aplica também aos shows de jazz, respeitando as particularidades do estilo: uma forma mais livre de música e os improvisos.
E vejam, isso não significa “tocar da mesma forma todas as vezes”. Sempre há espaço para pequenos incrementos na hora do show: uma frase diferente, uma mudança na dinâmica, uma interação com a platéia. A chave é fazer isso sem colocar a música e a experiência do público em risco. Afinal, inovar é também fazer um uso criativo do que já sabemos.
Músicas Próprias
Com a mente aberta, compor e criar músicas é um exercício de inovação por si. É muito legal criar uma linha de bateria do zero a partir de uma ideia apresentada. Nesse sentido, o ambiente de segurança é ainda mais importante, exatamente por conta do aspecto criativo coletivo e da vulnerabilidade de quem está apresentando a ideia.
É nessa hora que nosso repertório é muito útil. Primeiro, escuto a música com atenção, anoto a estrutura e fico imaginando o que posso aproveitar das coisas que sei para criar a linha de bateria. Depois, experimento alguns grooves para entender se fazem sentido. Esse momento, de tocar algo pela primeira vez, é sempre muito mágico, porque estou mostrando meu trabalho, transformando as experiências em algo prático e expandindo meu repertório.
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Tocando com o Balboa no segundo show no Hard Rock Café, em agosto de 2006. O jam block (peça rosa na bateria) sempre foi uma homenagem ao Carter Beauford.
De certa forma, estou homenageando os meus ídolos e referências. Na minha experiência musical, tenho muito orgulho de duas linhas de bateria que criei. As baterias de “Para Sempre Viver” do Balboa (confira abaixo) e de “Mutação“, faixa do ProjetoD, do guitarrista e produtor Raphael Mancini. A primeira tem algumas referências ao Carter Beauford, baterista do Dave Matthews Band e a segunda é um groove mais reto, parecido com o Steve Jordan, atual baterista dos Rolling Stones.
Ah, pode ser que o conjunto de habilidades atual dê conta do recado. Se não for o caso, uma dica simples do baterista Benny Greb mostra como você pode ampliar esse conjunto, sem necessariamente ter aprendido algo novo. Basta trocar o ponto final de uma frase por uma interrogação. Veja a partir dos 52:14.
Na bateria, seria algo como: “Toda virada deve usar ton-tons e terminar no prato(?)” ou “Toda virada deve ter mais notas do que o groove(?)”. Quando você transforma uma afirmação numa pergunta, sua percepção sobre aquele assunto muda e você está aumentando (ou utilizando) o seu repertório, sem necessariamente ter aprendido algo novo. É o exercício puro e cristalino da curiosidade.
Na minha vida corporativa, tive a sorte de trocar afirmações por perguntas algumas vezes e com pessoas muito legais. Tanto na Ciatech quanto no escritório da WorldSkills São Paulo 2015, algumas produções audiovisuais muito criativas saíram a partir da afirmação: “Precisamos de uma produtora para qualquer captação”. Precisamos?
Pensando bem, “trocar afirmações por perguntas” poderia ser a essência do desenvolvimento do repertório. Em um aspecto pessoal, o desenvolvimento do repertório também é um convite para pensarmos no nosso balanço entre “estabilidade” e “inovação”, mas nas palavras de John Blackwell: “manter simples” e “evitar tocar em excesso”. Prefiro tocar e trabalhar com pessoas que tem um amplo repertório e que sabem como usar cada recurso na hora certa. Gosto de exercer esse papel também.
Para mim, uma grande lição do jazz foi aprender a improvisar. E não falo somente de “corrigir algo não planejado”. Falo sobre conduzir a banda enquanto faço o meu solo. Aqui posso tocar em excesso, tocar alto, misturar várias coisas, me expressar e ser convidado a liderar. Depois, cedo o espaço e volto a colaborar com o próximo solista.
Mas aí é o tema do próximo artigo. 🙂
(Bônus: no seu círculo de amizades, tenha pessoas que compartilhem música. É impressionante como essa troca e a oportunidade de aprendizagem social são importantes na criação do nosso repertório. Existe uma aura mágica na frase “escutei esse artista e lembrei de você”).
Rafael
Incrível o seu texto e como podemos conectar toda a lógica de criação de um repertório com uma banda com todo o trabalho do mundo corporativo com um bando rsrsrs… fiquei pensando, isso daria um belo podcast com essas lindas músicas citadas de fundo, será? Já estou aplicando uma das coisas que aprendi aqui, transformando afirmações em perguntas. Show de bola! Belo texto!