O caminho se faz é caminhando – Parte três – A primeira cirurgia

28 de maio de 2021
28 de maio de 2021 Felipe

O caminho se faz é caminhando – Parte três – A primeira cirurgia

Eu penso muito em letras de música. Essa é sempre uma saída possível pra mim: (tentar) encaixar letras de música nos contextos onde estou inserido ou que estou vivendo. E pode ser absolutamente qualquer coisa, desde “Caçamba” do Grupo Molejo até “On the Sunny Side of the Street” popularizada por Louis Armstrong. Obviamente, as letras tem a ver com artista/estilo que estou mais ouvindo no momento. Nos terríveis anos do ensino médio, quando descobri Dream Theater, ouvia praticamente todo dia no meu discman(!). Mais tarde, muito ska e Dave Matthews Band.

É como a minha cabeça funciona, é meu jeito. 🙂

Muita água passou embaixo da ponte desde o diagnóstico até a data da cirurgia. A poeira se assenta e as coisas ficaram bem naturais depois que decidimos pelo Dr. Marcelo Vilela, entendemos todo o procedimento e encaixamos todas as preparações e decisões com a ideia de seguir a vida. As certezas: seria uma cirurgia longa, de aproximadamente 12 horas, eu estaria acordado em parte do processo, para que a equipe médica conseguisse fazer a relação entre a parte motora e linguagem sem me comprometer. “A ideia é você sair como você entrou“, nos disse o doutor em algum momento. Além disso, seria uma cirurgia com um corte bem grande, não precisaria me preocupar com o corte de cabelo e o pós-operatório seria chatinho. (Spoiler: não estava errado, mas tenho certeza que existem coisas bem piores).

Foi muito importante entender as decisões, escolhas e consequências, saber dos riscos e das possíveis sequelas temporárias. Foi fundamentalmente importante saber que eu tenho uma vida muito mais bonita e plena do que imaginava ter. E esse pensamento foi a chave para a terceira ressonância magnética que fiz, alguns dias antes da cirurgia. Comentei com a Tutu e a Carol que fiquei super calmo e emocionado, pensando em “Tenho muita história pra contar, muita coisa legal pra fazer: fotografar a lua, tocar com os amigos, curtir vocês, fazer uma família.

Que minha história é bonita, eu sou uma boa pessoa e sem nenhuma raiva ou ressentimento por estar passando pelo que estou passando. É a chance apresentada para me ver de uma nova forma“.

Na pior das hipóteses, o Dr. Marcelo comentou que eu poderia sair com um comprometimento temporário de linguagem ou na parte motora, mas que tudo iria passar em alguns dias. É fácil pintar umas coisas muito loucas na cabeça: vou sair bobo, vou mancar pelo resto da vida, esse trem não vai dar certo. Quando a ansiedade batia de uma forma mais latente, eu lembrava das aulas de meditação e colocava os pensamentos em ordem. O que tiver de ser, será.

Nesse período todo, duas letras vinham para a cabeça toda hora e sempre me emocionavam: “Can’t Win True Love” do Blues Traveler e “1999” do Prince.

Não eram letras novas, já cansei de ouvir os dois artistas, mas as letras – ou trecho delas – ganharam novos significados com o diagnóstico da doença. Talvez porque eu tenha começado a prestar atenção aos detalhes. O refrão da música do Blues Traveler é tipo assim:

There is no race to run (Não há corrida pra correr)
No evil curse needs to be undone (Nenhuma maldição precisa ser desfeita)
No hope of making what cannot be made (Nenhuma esperança em fazer o que não pode ser feito)
Some things are true and they will never fade away (Algumas coisas são verdadeira e jamais vão desaparecer)
Or up or down or out or in (ou subir, descer ou sair ou entrar)
No, you just can’t win (não, você não pode vencer)”

Eu estava correndo corridas na minha cabeça, e não estava precisando provar nada pra ninguém, fora os monstros que moram no meu latifúndio. Se vocês lembram, ser mais gentil comigo mesmo era a conclusão da parte 2.

Já o disco “1999” merece algumas linhas extras. Foi o primeiro álbum do Prince que ouvi com atenção e que me chamou atenção do quão genial ele era. “Purple Rain“, sua obra prima, é o álbum seguinte, mas “1999” é um excelente disco. A trinca com a faixa-título, “Little Red Corvette” e “Delirious” é muito sensacional. E ainda tem o bônus, “Lady Cab Driver“.

Bem no final da música, Prince começa a falar quase de maneira livre e tem um trechinho que eu acho bem poderoso:

We could all die any day 1999 (Podemos morrer a qualquer dia – 1999)
I don’t wanna die (Eu não quero morrer)
I’d rather dance my life away 1999 (Eu prefiro dançar na vida – 1999)
Listen to what I’m tryin’ to say…(Escute o que estou tentando a dizer)”

Sabotagem e baixa auto-estima são coisas que costumam andar de mãos dadas. Muitas vezes não damos valor para o que damos como garantido. O diagnóstico foi a primeira vez que acendeu um botão de alerta, uma forma de alerta sobre a finitude da vida. E aí comecei a valorizá-la mais. Bem mais. Nunca tive esse pensamento de acabar com a minha própria existência, e depois que estava tão dentro do processo, tão seguro do que iria fazer, o único pensamento possível era me respeitar e me esforçar, para conseguir sair melhor do que entrei.

No final de semana pré-cirúrgico, 01 e 02 de maio, subimos todos para a comuna na divisa entre Itabirito e Nova Lima. De novo, a comuna foi a minha morada no começo da pandemia, em março do ano passado e é um lugar de paz. A ideia era passar um final de semana relaxado, tentar tocar um pouco de música e colocar o foco em outras coisas.

No sábado, o Diego apareceu por lá e trouxe a guitarra, Aloízio levou o baixo e tocamos algumas coisas. Eu estava super nervoso, novamente tentando me provar para dois músicos absurdamente sensacionais. Talvez seja tema de um outro post, mas preciso realmente perder a timidez e o medo de tocar com gente tão legal e boa de serviço. Era uma zona segura, eram pessoas que só me querem bem. Não há motivo para tensão. Enfim.

O print da chamada com os amigos organizada pelo Marcos! 🙂

No domingo, fui surpreendido com uma chamada no zoom organizada pelo Marcos e com amigos nos mais diversos fusos horários do planeta: Caeté, São Paulo, Toronto, Vancouver, Estocolmo, Belo Horizonte. Me pegou de surpresa e eu perdi as palavras e o sentido das coisas. Eu realmente achava que seria uma conferência rápida, só um “vai dar tudo certo” e seguimos com nossas vidas no domingo. Eu fiquei ansioso, sem palavras, com aquele pensamento de “sério, gente, vocês tem mais coisa pra fazer no domingo“. Uma idiotice tremenda, a minha.

Comentei depois que “a ansiedade da ligação vem desse processo babaca de crueldade e achar que não precisam gastar tanto tempo com isso tudo“. Obviamente, estava muito feliz que o encontro aconteceu e que estou cercado desse amor todo.

Nesse momento, eu tinha alguns medos relativos à cirurgia. O maior deles, era o mais básico: saber se eu ia sobreviver ao procedimento. Não conheço um bloco cirúrgico na vida. Meu maior esforço cardíaco era fazer longos exercícios no crossfit. As chances eram baixas, mas não poderiam ser descartadas. Em seguida: como vai ficar meu corte de cabelo e se colocariam algum tipo de sonda para fazer xixi ao longo da cirurgia. Encerrada a conversa, a Andreza, cunhada da Carol, mandou um áudio explicando que a “sonda não é nada demais, nem doí pra tirar“. (Doi um pouco e incomoda uns dias)

Era isso. Tirando esses receios de novato, eu não tinha nenhum medo de operar, eu estava curioso com o processo todo. Estava confiante na escolha do médico, do hospital e do procedimento. Precisava acreditar no que aconteceria na segunda e torcer para o Dr. Marcelo e sua equipe fazerem o melhor trabalho possível.

Também precisava seguir as recomendações médicas. Como iria para o bloco na segunda cedo, a orientação era parar de comer à meia-noite de domingo e só beber água e água de coco até às 6h da segunda-feira. Lembrei de um meme que o Bizafra mandou pra mim anos atrás. Escrevi no grupo que temos, eu, ele e a Carol:

Biza, o cirurgião disse que é pra beber muita água e água de coco de meia noite até às 6h da manhã da segunda-feira. Pensei que quero ouvir uma coisa e uma coisa apenas“.

Hidratado.

Se a ordem era chegar bem hidratado no dia da cirurgia, iria cumpri-la. E pronto, estávamos no fatídico dia 3 de maio. Acordamos cedo, chegamos no hospital umas 7h30, fizemos todos os procedimentos e aguardamos. A cirurgia estava marcada para às 9h, mas as coisas atrasaram um pouquinho.

A foto do momento pré-cirúrgico. Registro da Carol Brant.

Me despedi dos meus pais e da Tutu, e eu e Carol fomos para a sala de pré-cirúrgico. Enquanto esperávamos, o anestesista, Dr. Braulio, apareceu para explicar como seria o procedimento e como as coisas iriam funcionar.

Na hora que ele citou algo do tipo “aí, vamos introduzir uma sonda para facilitar a urina ao longo da cirurgia“, nós dois rimos. De novo, pude realizar que quando não temos controle das coisas, o que nos resta é confiar no processo. Às 10h31 mandei mensagem pro grupo de whatsapp da família dizendo: “agora vai“. Me despedi da Carol, caminhei para o centro cirúrgico e a partir daqui, os relatos são bem diferentes. Obviamente, vou contar o meu lado. Carol, Tutu, Aloízio e meus pais podem contar uma versão diferente, mais coerente com quem precisou esperar. Para eles, foi um dia demorado. Pra mim, foi o contrário.

A primeira cirurgia

Vou caminhando até o bloco, batendo o maior papo com a equipe médica (lembram do meu mecanismo de defesa?), entro na sala e demoro um tempinho para sacar que a cirurgia seria ali.

E um fato curioso: não lembro de muitos detalhes da sala, fora a iluminação abundante.

Deito na cama/maca, vejo o Dr. Bráulio se aproximar e falar que iria começar a administrar o propofol. Resolvi bater papo, afinal de contas, o que mais poderia fazer ali?

– Dr. Bráulio, Propofol não foi o que matou o Michael Jackson?
– Foi, mas o problema não era o Propofol, era a falta de um médico para administrar o medicamento.

Nesse meio tempo, ele havia achado o acesso no meu braço direito, e começamos a bater um papo sobre o propofol, seu uso indiscriminado etc e tal. E uma vez que estávamos falando de artistas e o uso sem controle de medicamentos, não deu nem tempo para falar sobre a morte do Prince por conta da overdose de Fentanil.

Eu apaguei. Deve ter sido uma cena engraçada. O paciente entra falando feito locutor de festa no interior e apaga em menos de cinco minutos.

Eram umas 17h30 quando comecei a acordar, bem lentamente, com um tablet na minha frente e a neurofisiologista, Dra. Taís, pedindo para falar uma frase que estava na tela do dispositivo. Não tenho a menor ideia do que estava escrito, mas aparentemente consegui falar a frase.

Nos minutos seguintes, e também não sei quantos foram, eu basicamente contava de um até dez, dez até um e respondia também a comandos básicos pedidos pelo dr. Marcelo, apertar a mão da dra. Taís com a minha mão esquerda e conversava. No tablet, figuras que eu precisava responder o que eram: um elefante, uma árvore, uma foca etc.

Era muito doido, porque do ponto de vista clínico, o objetivo era estimular o meu cérebro e saber até onde ele poderia avançar. Eventualmente, eu parava de falar, perdia a força da mão e, num momento mais “tenso”, eu ficava com os lábios tremendo, sem conseguir falar nada. Ao fundo ouvia: “Doutor, perdeu!“, “Doutor, voltou!” e no meio da conversa, também escuto que poderia ser sedado novamente. “Depois conversamos mais, Felipe“.

E apago novamente, para só acordar novamente perto da meia-noite. “Felipe, a cirurgia acabou e vamos te transferir pra maca“. Acho que falei “beleza”, mas a real é que poderiam fazer o que quiserem, eu não consigo argumentar absolutamente nada.

Fui encaminhado para o CTI do hospital. Quando cheguei no quarto, a primeira coisa que fiz foi movimentar os pés e mãos, para ter uma ideia da possível sequela. Fiz as duas coisas sem dificuldades e isso me tranquilizou pra caramba. Lembro dos meus pais chegarem para me ver, mas eu estava grogue demais por conta da anestesia. Consegui interagir, fiquei super feliz em vê-los, mas foi isso.

Achava que a anestesia iria me dar uma noite deliciosa de sono, mas não foi o que aconteceu. Não achava posição, não conseguia virar, não podia beber água e a sonda estava me atrapalhando. Percalços de marinheiro de primeira viagem, naturalmente. Adicionalmente, o relógio estava parado, então não sabia que horas eram. Eventualmente, descobri uma posição que me permitiu dormir algumas horas.

Algumas horas. Nas descobertas da vida, saquei que CTIs são lugares propositalmente desenhados para não termos paz. Ainda bem. Fora o acompanhamento constante, toda hora alguém chega para medir a glicemia, pressão arterial e afins. Então não é um lugar para descansar. É para ser monitorado.

Pós-operatório

Na manhã de terça, recebi a visita do Dr. Marcelo e de outros médicos. Todos queriam saber como eu estava, como eu tinha passado a noite, meu estado geral. Carol chegou, foi lindo vê-la e uma lágrima escorreu quando passei o olho para ler todas as mensagens que havia perdido no dia anterior. “Seja gentil com você, Felipe e aproveite a jornada“. O grupo estava com coisas lindas, um alento danado.

Desci para fazer uma tomografia e uma ressonância (outra tragédia) e pude ir para o quarto, acompanhado da Carol. Foi absolutamente chocante ver os catéteres sendo retirados, especialmente o venoso central. O maior tubo que vi na vida. Alívio foi ver a sonda saindo também. Não há auto-estima que resista à sonda uretral.

Além de ver as mensagens, o legal da tecnologia é poder acompanhar as mudanças no corpo. Na terça-feira, foi quando comecei a ver as primeiras mudanças: além do curativo, o olho direito começando a inchar, além do lado direito do rosto, no geral. Do lado de dentro, tudo muito lento. Carol conta que andava pelos corredores do andar meio de lado, ainda meio bambo, mas conseguindo me movimentar.

Toda vez que deitava, precisava usar as perneiras para evitar trombose. Eu me sentia lento, mas bem. Cheio de suporte, carinho e quitutes que chegavam de quando em vez.

Dormi bastante de tarde, o que naturalmente comprometeu o sono da noite. No final do dia, o Dr. Marcelo nos visitou e disse que gostaria de me operar novamente no dia seguinte, quarta, 5/5. A ideia era tentar retirar o restinho do tumor. Dessa vez, seria uma cirurgia bem mais rápida, porque já sabiam dos acessos e tinham um conhecimento do procedimento e da cabecinha. Adicionalmente, estaria dormindo durante todo o período.

Pra quem já tinha lidado com a primeira intervenção, a segunda seria mais fácil. Falo dela na segunda-feira. 🙂

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